A Forma da Água é um filme que referencia e homenageia o cinema. E embora a metalinguagem proposta pelo cineasta Guillermo del Toro (A Colina Escarlate) não seja sempre explicitada ao longo da sua narrativa, ela desempenha um papel essencial na compreensão desta obra – além de tornar quase palpável a paixão que o diretor sente pela 7ª arte.

Escrito pelo próprio del Toro, em parceria com Vanessa Taylor (Divergente), o roteiro é ambientado na década de 1960 e acompanha Elisa Esposito (Sally Hawkins), uma mulher muda que divide a sua rotina entre cuidar do seu vizinho idoso, Giles (Richard Jenkins), e trabalhar como faxineira numa instalação de pesquisa do governo, comandada pelo Dr. Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg). A rotina é quebrada quando o militar Richard Strickland (Michael Shannon) traz para o laboratório uma estranha criatura aquática de formato humanoide, que serve de cobaia para os estudos realizados ali. Elisa se aproxima da criatura, alimentando-a e tentando estabelecer algum tipo de comunicação, e não demora muito para que comece a nutrir sentimentos por ela.

O conceito de uma história de amor entre uma mulher e um monstro remonta a contos de fadas como A Bela e a Fera. Isso fica ainda mais claro pela narração de Richard Jenkins, que logo de início já define aquele como “um conto de amor e perda, e do monstro que tentou destruir tudo”, sendo que, neste caso, monstro e criatura não são sinônimos. Além disso, existem referências à Bela Adormecida, especialmente na relação religiosa estabelecida pelo beijo – algo que estudos filosóficos comparam com o toque de mãos entre Deus e Adão, imortalizado por Michelangelo no quadro A Criação de Adão.

As referências ao cinema também são vastas. A começar pelo fato de a protagonista mora em cima de uma sala de cinema, uma sala que está sempre vazia. Hoje em dia, com as novas mídias e novas tecnologias, cada vez mais o cinema perde aquilo que o teórico Steven Shaviro chama de “status de dominante cultural”. E um dos primeiros baques sofridos pela arte foi nessa época retratada no longa, uma época que viu a popularização dos aparelhos de televisão. A comodidade das TVs fez com que as pessoas ficassem em casa, e muitos dos grandes palácios cinematográficos fecharam suas portas por falta de público.

Além do mais, foi nessa época que o cinema estadunidense passaria por mudanças. O período hoje conhecido como “clássico” havia acabado e o que viria depois – a chamada nova Hollywood – seria completamente diferente. Del Toro conduz a sua narrativa com a elegância dos clássicos, como forma de preservar/homenagear uma época que já passou e que não volta mais. Com isso, ele preserva um cinema que já chegou a servir como escapismo para os horrores do mundo real – algo simbolizado quando Giles muda de um canal que mostrava as notícias de conflitos raciais para outro que exibe um musical. Aliás, o próprio gênero musical também é referenciado aqui, não apenas numa cena específica (você vai reconhecer quando vê-la), mas em momentos singelos, nos quais a protagonista deixa que a música e a dança preencham a sua rotina.

Isso funciona por causa de Hawkins, que compõe Elisa com um misto de ternura, inocência e determinação. Privada da fala, a atriz usa toda a sua expressividade para ilustrar as suas emoções, seja em gestos infantilizados (como aquele no qual ela coloca a língua para fora) ou em cenas nas quais a carga dramática é maior, como quando ela se mostra frustrada por não conseguir transmitir todos os seus sentimentos.

Dentro o elenco de apoio, Michael Stuhlbarg, como sempre, entrega uma atuação competente e sensível (aliás, que ano para este ator), e Octavia Spencer, que interpreta uma faxineira amiga de Elisa, repete os seus trejeitos característicos, servindo como alívio cômico. E enquanto Michael Shannon encarna com prazer a vilania de Strickland, Richard Jenkins transmite toda a carga dramática de Giles, um artista gay que nasceu “muito cedo ou muito tarde para a sua vida”. E é louvável que o esforço do roteiro em dar espaço para que cada um desses personagens seja desenvolvido, em vez de servirem apenas como apêndices para o casal principal. Por falar nisso, é preciso destacar também a atuação de Doug Jones, cuja expressividade transparece mesmo sob a pesada maquiagem da criatura.

A concepção da criatura, por sinal, é outra referência metalinguística, uma vez que o seu visual é inspirado no clássico O Monstro da Lagoa Negra, clássico de 1954, dirigido por Jack Arnold. E esta não é a única “semelhança” entre os dois filmes. O longa de Arnold fala sobre um ser aquático com formato humanoide que captura uma mulher por quem ele aparentemente se apaixonou. E toda a sua trama é ambientada na floresta amazônica, ao passo que aqui, Strickland menciona que capturou a criatura na América do Sul. O próprio del Toro declarou que sua inspiração veio da obra de 1954, que o levou a pensar no que aconteceria se o amor do monstro fosse correspondido. E se O Monstro da Lagoa Negra tem uma sequência memorável embaixo d’água, del Toro faz o mesmo na cena final.

Aliás, a água é um elemento constante ao longo de toda a narrativa. Dos ovos que a protagonista cozinha toda manhã ao seu banho diário na banheira, a água está presente durante toda a projeção. E o fato de ela se masturbar com parte do seu corpo submerso já denota certo grau de intimidade e excitação com esse elemento, o que será exponencializado após ela conhecer a criatura – culminando no momento em que o banheiro é inundado. Ainda que seja, na sua essência, um filme de monstros, A Forma da Água não é indicado apenas para quem gosta de terror; é indicado para quem gosta de cinema. É uma homenagem prestada por um apaixonado, para outros apaixonados. E como não poderia deixar de ser, eu me apaixonei.

A Forma da Água (The Shape of Water)
EUA, 2017 – 123 min.
Direção: Guillermo Del Toro. | Roteiro: Vanessa Taylor e Guillermo Del Toro.
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Michael Stuhlbarg, Octavia Spencer.

AVALIAÇÃO
História e Roteiro:
Desempenho do Elenco:
Qualidade Técnica:
Direção:
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Daniel Medeiros é graduado em Cinema e Vídeo e formado nos cursos de Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica; e Jornalismo Cinematográfico - Crítica, Reportagem e Coberturas de Festivais. É membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e pesquisador sobre cinema de terror.