E O Vento Levou (1939), Tempo de Glória (1989), Amistad (1997)… esqueça todas as referências cinematográficas que, por acaso, você possa ter em relação a escravatura no cinema. Donos de escravos bonzinhos, romances inter-raciais ou brancos arrependidos… esqueça também os personagens estereotipados que povoam estas produções. Distante de qualquer sentimentalismo exacerbado, nem concessões em 12 Anos de Escravidão. O diretor Steve McQueen fez questão de retratar com brutal realismo toda a humilhação e barbárie com que eram tratados os negros nos Estados Unidos naquele período. Socos, pontapés, açoitamentos, estupros, queimaduras, navalhadas no rosto. A violência explícita faz A Cor Púrpura (1985) de Steven Spielberg, parecer uma “Sessão da tarde”.

A história é baseada na autobiografia do violinista Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), publicada em 1853. Homem negro, livre, que vivia em Saratoga, no Estado de Nova York, com sua esposa e dois filhos, Northup é iludido por dois criminosos a serviço de fazendeiros do sul escravocrata que se fazem passar por proprietários de um espetáculo itinerante. Conduzido a Washington, onde supostamente deveria fazer uma apresentação musical, ele é dopado, colocado num navio e vendido como escravo na Louisiana. Sem o direito de recorrer por sua liberdade, Solomon recebe dos algozes o nome de Platt sendo obrigado a retornar ao estágio de cativo.

Inicialmente, Northup vai trabalhar como lavrador numa plantação de cana-de-açúcar sob os auspícios de William Ford (Benedict Cumberbatch), sujeito benevolente, mas que em momento algum deixa de enxergá-lo como mercadoria. Após quase ser enforcado pelo sádico capataz da fazenda (Paul Dano), ele é vendido a diferentes senhores até cruzar com o cruel e imprevisível Edwin Epps (Michael Fassbender). Nas terras do sujeito, ele viveu e testemunhou monstruosidades como os vividos pela escrava Patsey (Lupita Nyong’o, brilhante), alvo da compulsão sexual de seu dono e vítima constante de seus castigos – no pior deles, por conta de um sabonete roubado, Epps chicoteia a mulher inúmeras vezes até arrancar pedaços de sua pele.

O excelente roteiro de John Ridley não se baseia em discussões raciais ou sociais para teorizar os motivos da escravidão; seu objetivo é mostrar a forma desumana como os negros eram tratados. Sendo assim, nestes 12 anos onde o protagonista é condenado a viver um martírio, McQueen aproveita para mostrar os podres da História em sua forma mais crua. E não é só a brutalidade gráfica que incomoda no longa. Diálogos ásperos – “Somos negros, nascidos e criados escravos. Não temos estômago para se rebelar” – que denotam o conformismo dos próprios cativos com sua condição, e os longos silêncios constrangedores que prenunciam explosões de violência, soam igualmente inquietantes.

12 Anos de Escravidão foi considerado por historiadores e ativistas como a obra audiovisual que mais fielmente reproduz o cenário de degradação moral, desumanização e violência física impostas pelo sistema escravagista. Indicado a nove Oscars (inclusive Melhor Filme), a produção é um forte candidato em todas as categorias que concorre. Retrato de um período vergonhoso da história dos Estados Unidos, talvez a conservadora Academia de Hollywood prefira empurrar a sujeira para debaixo do tapete (vermelho) e conceder ao longa apenas prêmios técnicos. Porém, se houver justiça poética no cinema, ao menos Steve McQueen receberá sua estatueta dourada, a primeira da história entregue a um diretor negro.

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12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave)
Estados Unidos, 2013 – 134 min.
Direção: Steve McQueen. | Roteiro: John Ridley.
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong’o, Sarah Paulson, Benedict Cumberbatch, Brad Pitt.