A música expressa o que não pode ser dito em palavras mas não pode permanecer em silêncio“, frase atribuída ao poeta francês Victor Hugo, autor de Os Miseráveis, parece ter sido a grande inspiração do diretor Tom Hooper (O Discurso do Rei) ao conduzir esta nova versão do clássico da literatura mundial. Longe de ser mais uma adaptação cinematográfica fiel ao livro, o roteiro escrito por William Nicholson usa como base o musical criado por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg em 1980, um dos mais famosos e mais encenados pelo mundo – informalmente conhecido por Les Mis.

Ao tomar esta decisão, os produtores transformaram a obra-prima escrita no século XIX num espetáculo extravagante onde sua maior qualidade é também seu maior revés: 99% dos diálogos são cantados e, embora bem ensaiados, causam estranheza em quem está acostumado com o padrão estabelecido por Hollywood para o gênero – onde números musicais intercalam a fala coloquial – e passam a impressão de uma teatralização exagerada. Ironicamente, o silêncio faz falta, e a conexão entre o público e os personagens acaba prejudicada. Como pode o espectador se apiedar e compreender a jornada moral destas criaturas se um link emocional entre as partes nunca é formado?

A história se passa na França de 1815 (data da Batalha de Waterloo), uma época em que os os efeitos da Revolução de 1789 ainda são muito presentes, com o país marcado pela crise social e grande parte da população vivendo em extrema miséria. Neste cenário, Jean Valjean (Hugh Jackman), sujeito esteve preso por 19 anos após roubar um pão para alimentar a sobrinha, ganha sua liberdade condicional sob o olhar imponente de Javert (Russell Crowe), um inspector de polícia linha dura. Após uma série de acontecimentos infortúnios, Valjean decide fugir e começar uma nova vida, com uma nova identidade, escapando da obrigação de apresentar-se as autoridades todos os meses.

Oito anos depois, ele se tornou um próspero e respeitado industrial, além de prefeito da cidade de Montreuil-sur-Mer. Em sua fábrica trabalha a jovem Fantine (Anne Hathaway) que, após uma conspiração das colegas, é despedida do emprego sem que Valjean saiba. Sem ter como sustentar a filha pequena, ela é obrigada a vender seu cabelo, dentes e se prostituir – na melhor cena do filme – falecendo logo em seguida por conta da saúde debilitada. Sentindo culpa e remorso, Valjean decide adotar Cosette (Isabelle Allen e Amanda Seyfried em épocas distintas), filha de Fantine, enquanto ainda precisa lidar com Javert, que descobriu seu disfarce e pretende colocá-lo novamente atrás das grades. Paralelamente, uma nova revolução está em andamento nas ruas, onde jovens rebeldes pretendem lutar por melhores condições sociais no país.

Tecnicamente correto, com caprichados figurinos e uma direção de arte repleta de cenários majestosos – que poderiam ser mais valorizados se Hooper não optasse por tantos close-ups e planos fechados -, o longa peca ao enveredar demais por tramas paralelas e povoar a história com muitos personagens, que enfraquecem o jogo maniqueísta de gato e rato dos protagonistas. Frustra também o fato de várias problemáticas serem levantadas e depois descartadas em prol de um romance que em momento algum convence. Quanto aos atores, Jackman e Hathaway estão fantásticos, mas falta voz e afinação a Crowe, limitado em seu talento vocal – e olha que o sujeito já foi vocalista de uma banda! Destacam-se entre os coadjuvantes o casal de golpistas Thénardier, vivido por Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter, o alívio cômico da fita, proporcionando divertidos números musicais.

Entre altos e baixos, a apreciação de Os Miseráveis depende do quanto o espectador está disposto a relevar certos “detalhes” e aceitar os diálogos musicais. São quase três horas de projeção que podem ser arrebatadoras ou cansativas, dependendo do gosto do freguês. Concorrendo a oito Oscars, incluindo Melhor Filme, Ator (Jackman) e Atriz Coadjuvante (Hathaway), o filme, ainda que explore superficialmente temáticas importantes do livro e falhe no desenvolvimento da narrativa, consegue transmitir de forma satisfatória os valores morais (hoje esquecidos) presentes na obra de Victor Hugo.

(3/5)
Os Miseráveis (Les Miserables)
Reino Unido, 2012 – 157 min.
Direção: Tom Hooper. | Roteiro: William Nicholson.
Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne.