Embora não seja uma regra, muitas das melhores ficções científicas enxergam no futuro uma forma de poder falar de problemas contemporâneos à época da sua produção. Basta pensar em como Planeta dos Macacos refletia os medos da sociedade em relação à uma possível guerra nuclear, ou como Blade Runner falava do crescimento populacional exacerbado e da ascensão da robótica, ou como 2001 – Uma Odisseia no Espaço abordou a corrida espacial e mostrou o homem pisando na lua um ano antes de isso de fato acontecer. Não que essas obras falassem apenas sobre esses assuntos, ou que esses fossem seus temas centrais, mas tais discussões muitas vezes pessimistas acerca do futuro estavam presentes nesses longas. Tendo feito E.T. – O Extraterrestre, Contatos Imediatos de Terceiro Grau e Guerra dos Mundos, o cineasta Steven Spielberg não é estranho ao gênero. Ainda assim, seus filmes nem sempre dialogavam com a sua época (ou ao menos não de modo explícito) e, em geral, apresentavam uma visão mais otimista. Jogador Nº 1 é sua mais nova incursão no gênero, e novamente o diretor escolhe deixar um pouco de lado essa ligação com o presente, desta vez para se focar no passado.

A ação se passa em 2045, e acompanha Wade (Tye Sheridan), um jovem que, como a maioria da população do planeta, passa seus dias logado na OASIS, um jogo de realidade virtual repleto de referências à cultura pop das décadas de 1980 e 1990. Pouco antes de morrer, o criador do jogo, Halliday (Mark Rylance), escondeu um easter egg dentro da OASIS, e o usuário que a encontrar herdará toda a sua fortuna. As facilidades do mundo virtual, somadas à possibilidade de enriquecer aparentemente sem esforço, incentivou a população a jogar o tempo todo. Isso fez o mundo real perder “a graça”. Muitos moram em favelas verticais, as ruas são sujas e a educação parece ter sido deixada de lado. Nada disso importam, pois todos vivem em função do jogo, que também lhes permite ser quem eles desejam ser. Essa ideia de criar um avatar melhorado de si mesmo como forma de viver em um mundo de fantasia encontra reflexo na nossa sociedade contemporânea, na qual as redes sociais vendem a ideia de uma vida perfeita – ou melhor, uma vida tomada por filtros que escondem as imperfeições. Da mesma maneira, as cenas nas quais as pessoas são vistas jogando nas ruas, indiferentes ao que acontece ao seu redor, lembram àquelas pessoas que se colocam em perigo porque não conseguem largar seus telefones celulares nem para atravessar a rua.

Porém, ao limitar as discussões sobre a contemporaneidade a interpretações rasas como estas que acabei de citar, fica claro que este não é o objetivo do roteirista Zak Penn (que escreveu o longa em parceria com Ernest Cline, com base no livro deste). O foco dele é outro. Experiente roteirista de adaptações de histórias em quadrinhos, Penn também já escreveu e dirigiu documentários e mockumentaries focados na cultura pop (um deles, Atari: Game Over, tem uma relação direta com esta obra). E Jogador Nº 1 parece ser o veículo perfeito para ele exercitar essa sua paixão. Afinal, são muitas as alusões a filmes e animações do século XX, do DeLorean que o avatar de Wade dirige no jogo, à moto pilotada pela revolucionária Art3mis (Olivia Cooke), que saiu da animação Akira, passando pela presença do Gigante de Ferro – quem já viu a animação homônima vai reconhece-lo – e por aparições rápidas do King Kong, do Tiranossauro Rex, do Freedy Krueger e até do boneco do Chucky. Aliás, os fãs de terror vão se deliciar com uma determinada cena que homenageia um dos maiores clássicos do gênero.

O problema é que Penn parece não confiar que o público vá reconhecer tais referências, e resolve inserir diversos diálogos expositivos cujo único propósito é mostrar de onde saiu um determinado objeto e/ou personagem. E sendo aquele um universo no qual quase todos compartilham desse tipo de conhecimento, tais diálogos soam como uma cacofonia, por reforçarem aquilo que a imagem já mostrou. Além disso, o roteiro se apoia demais em coincidências e em situações inverossímeis para dar andamento à história, como é o caso da cela da prisão que tem uma maçaneta do lado de dentro, ou do grupo de pessoas que nunca se viu e que mora em locais distintos, mas que se reúne rapidamente num momento de perigo, ou quando alguém percebe – e até comenta em voz alta – que seu furgão foi escaneado, não faz nada para tentar camuflar o veículo e é capturada por causa disso.

No alto dos seus 71 anos, o veterano cineasta Steven Spielberg não demonstra sinais de cansaço, não apenas ao dirigir uma média de um filme por ano nos últimos quatro anos, mas por realizar longas diferentes entre si. E se é possível enxergar resquícios das aventuras juvenis que o diretor fez outrora, existe também um tom indefinido em relação à seriedade da situação aqui apresentada – que fica evidente numa figura como Sorrento (Ben Mendelsohn), ora visto como um executivo frio e ora como um sujeito tolo. Além do mais, a gravidade da trama é suavizada pelo fato de estarmos assistindo a um jogo sendo jogado pelos personagens, fazendo com que os sacrifícios feitos por eles percam o impacto. E por mais que Spielberg seja hábil ao misturar as ações do mundo real com o virtual – como quando uma perseguição de carros atrapalha o andamento do jogo –, nós nunca chegamos a nos preocupar com o que acontece lá fora, ao mesmo tempo em que estamos seguros de que, seja lá o que aconteça lá dentro, isso não terá um grande impacto na vida daquelas pessoas.

Visualmente, porém, o filme é impecável. Os efeitos especiais são bem feitos, sem soarem “realistas demais” – afinal, essa não é a proposta –, o design de produção diferencia bem o mundo real do virtual pelo uso das cores, da mesma forma que a fotografia adota paletas distintas para esses dois universos. E Spielberg conduz as cenas de ação com segurança, explorando ao máximo a artificialidade que a narrativa permite. Embora possa parecer que estamos assistindo a um jogo operado por outra pessoa, Jogador Nº 1 não deixa de ser, sim, uma experiência muito divertida.

Jogador Nº 1 (Ready Player One)
EUA, 2018. 140 min.
Direção: Steven Spielberg. | Roteiro: Zak Penn e Ernest Cline.
Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendelsohn, Lena Waithe, T.J. Miller, Simon Pegg.